Uso de linguagem neutra na Ufba gera denúncias e queixas policiais
Ufba diz seguir Acordo Ortográfico
O uso da linguagem neutra — uma forma de adaptar o português para expressões que não incluam distinção entre gênero feminino e masculino — está no centro de uma queixa policial e outras denúncias enviadas à ouvidoria e ao gabinete do vice-reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Uma das integrantes do Centro Acadêmico Unificado da Escola de Belas Artes da Universidade (Caueba), Tatyana Mercês, afirma ser vítima de uma acusação “injusta” de transfobia por colegas de agremiação após se negar a utilizar a linguagem neutra em uma carta-convite para um evento realizado pelo Centro seguindo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Tatyana também é graduada em Letras e ocupava cargo de representação discente no Caueba como co-fundadora e participante do coletivo Canela Unificado (CaUni), organização composta por mais de 20 centros e diretórios acadêmicos, atléticas e ligas vinculadas à Ufba.
Eleita uma das diretoras do evento Canelada, criado para recepcionar os calouros de 2024, Mercês ficou responsável por redigir a carta-convite aos centros e diretórios acadêmicos. A discussão começou após ela enviar o esboço do documento em um grupo fechado do Whatsapp, dedicado a organizar o Canelada, para avaliação do texto.
Segundo ela, um dos integrantes do grupo questionou a ausência da linguagem “inclusiva/neutra”. “Onde se escreve usando tod@s, todxs, todes, elu, dentre outras alterações descoordenadas de um padrão normativo”, detalhou Tatyana.
A estudante retrucou os colegas. Para ela, por se tratar de um documento formal, a linguagem sugerida não cabia. “Trouxe outros pontos como o fato de ser questionável a inclusão, uma vez que dificulta o entendimento de todos, inclusive de PCDs [pessoas com deficiência] que precisam, por exemplo, de aparelhos eletrônicos para leitura. Também o fato de precisar haver consenso para que mudanças assim no idioma pudessem ser exigidas”, afirmou.
A Ufba informou à reportagem que segue “o acordo ortográfico e as normas de redação do governo federal”, e não possui normas ou recomendações sobre a linguagem neutra.
O Caueba emitiu nota à reportagem, em que afirma que pediu a Tatyana apenas “neutralidade” na carta, para incluir a diversidade de pessoas, como uso do termo “pessoas” – leia na íntegra mais abaixo nesta reportagem.
Vazamento da conversa
Na versão de Tatyana, o colega que levantou o questionamento, Lírio Medvedovsky, uma pessoa trans que atende pelos pronomes ele/dele e representava o Diretório Acadêmico do curso de Secretariado Executivo (Dasec) no CaUni, negou o debate, saiu do grupo e afirmou que o coletivo havia permitido transfobia.
O Dasec publicou uma nota de repúdio em que anuncia a sua “descontinuação na construção do Movimento Canela Unificado” e endossa a acusação de transfobia. “Após uma infeliz situação de desrespeito e apagamento das políticas de inclusão relacionadas à transgenereidade, o Dasec compreende que há um desgaste no movimento Canela Unificado e uma falta de real compromisso com as/os/es estudantes e suas demandas”, afirma o texto.
O coordenador geral do Caueba, Rafael Moreno, se reuniu com Tatyana. De acordo com a estudante, ele concordou com a acusação de transfobia e exigiu uma retratação. Àquela altura, prints das conversas entre os colegas já tinham sido vazados. “Vazar os prints com meu nome implicou em me acusar de ter sido a pessoa transfóbica na situação”, disse Tatyana.
Depois do ocorrido, houve uma reunião, na Faculdade de Direito da Ufba, em que ficou determinado que todos os documentos gerados pelo coletivo deveriam ser redigidos com a linguagem inclusiva/neutra. “Não houve debate, não houve apreciação pública, não houve consulta de especialistas, dados de pesquisa. Nada”, critica Tatyana.
Em março, Tatyana comunicou seu afastamento por tempo indeterminado de todas as funções exercidas por ela, devido ao assédio moral que ela diz ter sofrido ao ser acusada pelo crime de transfobia e por reivindicar o direito de usar a “língua padrão”.
“Estava muito abalada, ainda precisava processar tudo o que estava acontecendo e tomar providências. Isso em absoluto não quis dizer que eu abriria mão do meu espaço como representante estudantil”, disse. Tempos depois, ela foi informada que havia sido expulsa e, portanto, não teria mais a possibilidade de voltar a participar e tomar decisões como integrante do CA.
O outro lado
Em resposta, o Caueba publicou um posicionamento onde afirma que, houve uma forte resistência de Tatyana em “adotar a linguagem inclusiva (erroneamente reduzido pela mesma ao uso de tod@s, todxs ou todes), argumentando sobre acessibilidade e norma culta, algo que, apesar do erro, foi compreendido pelos colegas do grupo, mas que em seguida, ao ser sugerido que fosse usada uma linguagem que não flexionasse o gênero de tal forma, e fosse utilizada uma linguagem inclusiva como usar ‘pessoas’, ‘representantes da comunidade’ etc (mantendo a neutralidade), DE FORMA INJUSTIFICADA, a colega PERMANECEU INTRANSIGENTE à adoção da linguagem inclusiva, argumentando defender a norma culta e a gramática, sendo que isso não estava mais nem em pauta, visto ser totalmente possível se ter a linguagem inclusiva sem flexionar o gênero”.
O texto diz ainda que “o que torna bastante curiosa a insistência de defesa da norma padrão da colega, foram diversos passagens no documento redigido pela Ex-vice coordenadora geral, apontadas por uma colega do CAUEBA, que estavam fora dessa norma padrão, erros esses com os quais ela não se preocupou tanto quanto com negar o uso da linguagem inclusiva”.
Segundo o comunicado do Caueba, em uma reunião realizada com a presença de Tatyana para tratar do assunto ela afirmou “que por motivos legais estaria gravando a reunião, o que fez com que, para nos resguardar, também gravássemos a reunião”.
Nesse encontro, Tatyana se referiu a um homem trans, que quer ser chamado pelos pronomes masculinos (ele, o, etc), como “a colega”, de acordo com essa versão. Ao ser corrigida, continua o comunicado, Tatyana resistiu a adotar o pronome solicitado.
“Eu tenho 47 anos de vida, fui treinada pra rapidamente identificar quem é homem quem é mulher, inclusive por questão principalmente de segurança”. Ao ser questionada se estava errando o pronome de propósito, Tatyana respondeu que “às vezes sim, às vezes não”, segundo a versão do Caueba.
Em relação à sua expulsão do CA, o Caueba afirma que “DECORRIDAS QUASE 2 SEMANAS, APÓS O AUTO AFASTAMENTO DA Ex-vice coordenadora geral do Centro Acadêmico, com a própria não tendo se retirado do grupo operacional da entidade, foi mandada uma mensagem a comunicando que seria retirada do grupo e que se ela ainda tivesse alguma questão poderia mandar mensagem ou procurar qualquer membro do CAUEBA para conversar sobre”.
“Assim, fica ainda mais INACEITÁVEL o abaixo assinado divulgado pela mesma que alega ‘expulsão’ e que ela foi ‘excluída das decisões do Centro’ sendo que em nenhum momento ela foi expulsa, ela se afastou por decisão própria e EM TODAS AS OPORTUNIDADES QUE FORAM DADAS à Ex-vice coordenadora geral, a mesma se ausentou e preferiu apresentar ameaças e intimidações jurídicas à todo o coletivo”.
Por fim, o Caueba diz que “todas as pessoas que se sentiram agredidas nesse processo já estão buscando os devidos meios legais e reafirmamos que resistiremos enquanto entidade estudantil e comunidade universitária a todos os ataques que vêm sendo promovidos”.
O texto completo com o posicionamento do Caueba pode ser lido nas redes sociais do Centro Acadêmico.
Posicionamento da universidade
Questionada sobre o caso, a Ufba respondeu, por meio de nota, que “enfrenta igualmente todas as formas de assédio, agressão ou linchamento público, vez que afrontam tanto aos princípios e valores de uma educação emancipadora, eixo central da sua missão quanto ao estado democrático de direito.”
“Em cumprimento à legislação vigente e, com base nessa, a universidade mantém estrutura, equipe e regulamentos voltados para a apuração de ocorrências registradas, respeitado o devido processo legal e assegurando o amplo direito de defesa”, continuou. Procurado pela reportagem, o Ministério da Educação (MEC) informou que não teria porta-voz para falar sobre o tema.
Não é a primeira vez que a Ufba é envolvida em uma polêmica sobre acusações de transfobia. Em setembro do ano passado, uma aluna acusou uma professora da Faculdade de Comunicação da universidade do crime.
A docente, na época, admitiu que interpretou mal a identidade de gênero da estudante durante um debate em sala de aula. Mas que a estudante, de volta, rebateu com ironia e falsas acusações. As duas apresentaram denúncias à Ufba, mas os processos foram arquivados, informou a instituição.
Fonte:Correio da Bahia